Feelings, nothing more.

Na reportagem “Como nasce um hit” no Segundo Caderno do Jornal O Globo (17/2/2019), a lista de sucessos que invade o YouTube, Spotify, Deezer e Crowley no Brasil é feita por uma dúzia de compositores; denominados “arquitetos de hits”. Eles são os autores das 20 músicas mais baixadas no país. Revelam que as suas fontes de inspiração são, na maioria das vezes, pescadas na vida digital, por meio de memes, hashtags e postagem nas redes sociais, indo do tema aos bordões da web. Só um alegou que buscou na literatura de Graciliano Ramos, a inspiração. Mas o motivo deixaria o autor mais desconfortável que em “Vidas Secas”.

Seria possível hoje, um sucesso só, fazer verão? Então, vamos contar uma historinha.

Enquanto a seleção brasileira vivia do seu último sucesso, o Tricampeonato Mundial no México em 1970 e tentando repeti-lo na Copa de 1974 da Alemanha, um brasileiro desbancava a hegemonia das paradas americanas cantando a música “Feelings” na língua estadunidense. Naquela Copa, o “Carrossel Holandês” passava o rodo nas seleções (com a gente embaixo), perdendo apenas na final para a anfitriã Alemanha.

No campo musical, esse brasileiro como um centroavante solitário, goleava as paradas nacionais e internacionais atacando de rádio, vinil e fita cassete. Era o jeito de consumir hits.

Eu, jovem componente de uma equipe de som no subúrbio do Rio de Janeiro, sabia que “Feelings” liberava a libido dos casais. Os primeiros acordes desse sucesso mundial podiam definir também o primeiro beijo. Não, também era não, mas às vezes, rolava um sim de comum acordo.

O brasileiro, que botava todo mundo para beijar em inglês, era o paulista Mauricio Alberto Kaissermann, cantor e compositor de um sucesso que abalou de Bangu a Berlin. Mesmo tendo feito centenas de outras músicas que invadiram as paradas mundiais, nenhuma alcançou a dimensão de “Feelings”. Abriu as portas da fama e dos cofres.

Conhecido pelo nome artístico de Morris Albert, tornou-se um fenômeno mundial. O fakename era comum entre cantores e compositores nacionais para serem consumidos como “americanos” por fãs brasileiros, comprando gato por rabbit.

“Feelings” teve mais de 100 regravações no mundo e está entre as 100 músicas mais lembradas de todos os tempos. Morris Albert vendeu 160 milhões de discos de toda a sua obra em mais de 50 países. Segundo o Google, ele mora há décadas na Itália, provando que cantar em inglês dá dinheiro, mas é melhor gastá-lo onde existem bons vinhos e boa comida.

A pergunta é: em tempo de streaming, um único sucesso seria capaz de sobreviver quanto tempo hoje? Claro que sucessos continuam sendo produzidos, mas a demanda exige uma larga escala, pois a novidade é maior do que a necessidade. Poucas músicas sobrevivem do seu próprio sucesso, sendo engolidas pela próxima, provavelmente, do mesmo autor.

Não há nenhum julgamento de qualidade. Afinal, uma música que repete mais de 17 vezes a palavra “sentimentos” não é um parâmetro de originalidade. E não se pode dizer que o desconhecimento da língua inglesa entre jovens no Brasil na década de 70 justificasse o “eu gosto, canto, mas não entendo”. O sucesso mundial prova que não.

Há uma fórmula, então? Sim.

Os fazedores de sucesso existem desde que o mundo é música. A cada dez sucessos na década de 80, 11 eram de uma dupla, Sullivan & Massadas (mesmo lance de fakenames). Mas se a fonte era a alma das ruas, agora, é a vida na rede é que dá o tom. Não há como negar. Podemos não gostar. Podemos até dizer que “não é bem assim”. Podemos. Mas as defesas caem diante da realidade que a vida vivida perdeu espaço para o “black mirror”.

Essa é a vida real para bilhões hoje. É na qual eles amam e se dizem amados. Traem e são traídos. Vivem a felicidade e as verdades salvadoras do seu dia. Em vez de ir em busca do nirvana em Shangri-La, levam esse mundo idílico dentro da bolsa e do bolso no smartphone. O avatar idealizado no mundo paralelo existe. E vem com uma trilha sonora a cada minuto. Porque do lado de dentro desse mundo, nossos sentimentos não podem esperar. Eles vivem a urgência de serem atendidos, inclusive, por um hit musical.

Talvez um dia, “Fellings” retorne em um filme de Tarantino e vire sucesso. Afinal, ele é o eterno cool e tudo que toca vira cult. Fora isso, algo como “Fellings, nothing more than feelings” acontecer de novo, never more.

Faça o teste e conte quantos “sentimentos” cabem numa música:

https://www.youtube.com/watch?v=wU0Pp2n6ooE

E sobre os “arquitetos”, tratar aqui:

https://oglobo.globo.com/cultura/como-nasce-um-hit-autores-das-20-cancoes-mais-ouvidas-no-brasil-hoje-explicam-23458585