Aproveite essa conversa com o cientista e escritor Marcelo Gleiser, cofundador do Island of Knowledge, e Lourenço Bustani, embaixador global do Island of Knowledge.
Marcelo Gleiser: “Lideranças empresariais têm enorme poder de transformação”
Situada no coração da Toscana, o Island of Knowledge é um retiro dedicado ao florescimento humano, fundado pelo cientista, professor e escritor Marcelo Gleiser e sua esposa, a psicoterapeuta Kari Gleiser. Fica em Barottoli, localidade histórica com origens no século XIII, nas colinas que rodeiam a cidade de Monteroni d’Arbia, a 20 minutos de Siena e a 1 hora de Florença. A ideia é promover lá, a partir de outubro deste ano, retiros, think tanks e cursos, propiciando encontros entre pessoas e diferentes modalidades de conhecimento, combinando autodescoberta, ciência e filosofia em um contexto íntimo e exclusivo.
Sobre o projeto e outros assuntos, B.Trends conversou com o Gleiser e com Bustani, que é também empreendedor e cofundador da consultoria Mandalah.
É agora ou nunca. Está na hora de nos reinventarmos como espécie. A frase é sua (Gleiser) numa entrevista recente ao Valor. Qual o papel que imaginou para ajudar a transformar principalmente a mente e a linha de pensamento de lideranças de grandes empresas, do empreendimento Island of Knowledge?
Marcelo Gleiser – A primeira coisa essencial é entender que lideranças empresariais têm enorme poder de transformação. Afinal, empresas afetam não só as pessoas que lá trabalham como todo um grande círculo de influências que vão dos clientes aos fornecedores e membros do Conselho, o que podemos chamar de uma ecologia corporativa. Portanto, se uma instituição abraça uma visão de mundo baseada em valores relacionados com a preservação ambiental, a economia regenerativa, o respeito ao planeta, à vida nele e a seus recursos, essa visão de mundo vai levar a transformações com grande potencial de impacto. No seu braço de desenvolvimento de lideranças empresariais (existem três outros), o Island of Knowledge se propõe a fazer retiros e offsites para pequenos grupos de lideranças desenhados para oferecer as ferramentas intelectuais e emocionais para que essa visão de mundo seja desenvolvida e implementada. Nossa proposta é de ir além dos ultrapassados e insustentáveis paradigmas de progresso a qualquer custo e de crescimento infinito para uma nova postura coerente com o conhecimento científico e econômico atual. Essa modernização conceitual é essencial para as companhias que querem continuar a prosperar na realidade do século 21.
Você pode comentar como imagina o propósito dos Think Tanks, por exemplo, que você vai promover no Island of Knowledge? Que perfil de pessoas irão, com que objetivo?
Marcelo Gleiser – O Think Tank é outro braço de atividades do Island of Knowledge, financiado por bolsa de pesquisa que eu acabo de receber da Fundação John Templeton. A proposta é reunir grupos de, no máximo, dez pensadores de áreas diversas para passar uma semana trabalhando intensamente, abordando um problema ou desafio específico de grande impacto para a sociedade moderna. Por exemplo, nossa primeira sessão, em outubro, será sobre “As Várias Faces da Inteligência: Vegetal, Animal, Humana, Máquina, Alienígena e Planetária”, e reunirá astrobiólogos, filósofos, etnobotânicos, neurocientistas, filósofos, psicólogos e lideranças indígenas para juntos tratarmos da natureza conhecida e desconhecida da “inteligência”, desde questões mais técnicas da neurociência ao desenvolvimento de nova moralidade com relação a todas as formas de vida (o que chamo de biocentrismo), a uma ética da relação entre humanos e máquinas, uma das grandes questões atuais. Faremos isso por três anos com esse financiamento e buscaremos novas fontes para que o projeto continue. Os resultados serão amplamente divulgados em artigos, livros, podcasts, e terão uma série de intervenções nas mídias sociais de impacto no hemisfério norte e sul.
E que cursos serão dados? Como imagina esses cursos?
Marcelo Gleiser – No momento, o primeiro curso está sendo organizado pela Latitudes, empresa especializada em viagens de conhecimento pelo mundo inteiro. Eu desenho e ofereço os cursos, e os temas são diversos e flexíveis, como ilustramos no nosso website, Island of Knowledge. Por exemplo, uma versão compacta e intensa do Física para Poetas, do Pense como um Cientista, Caminhos do Bem Viver, As Origens da Filosofia e da Ciência, Nossa Busca por Significado, Galileu, Ciência e Religião etc. Tentaremos outros formatos no futuro, talvez em parceria com algumas escolas do Brasil e do mundo, e/ou com nossa equipe organizando os cursos diretamente.
Em agosto, você voltará à Rio Innovation Week, e imagino que vá abordar seu novo empreendimento. Inclusive comentou que a presidente do Clube de Roma, Sandrine Dickson Decleve, estará lá. O que pretende trazer para o evento e como pensa em inspirar os empresários e empreendedores presentes?
Marcelo Gleiser – O RIW é gigantesco e desenhado a vários tipos de público, e fiz uma curadoria dedicada à ciência e ao seu impacto social e cultural. O meu palco chama-se “Ciência para Todos”, parte do meu trabalho de democratizar o saber científico e seu impacto na sociedade moderna, e sim, alguns de meus convidados, como o Prêmio Nobel Kip Thorne e o físico e pensador Fritjof Capra, estarão comigo no palco principal. Serão quatro dias, cada um com um tema específico: Mente, Espaço, Realidade, Planeta. Tive a felicidade de organizar um time espetacular de palestrantes que incluem não só a Sandrine, que falará sobre economias regenerativas e um novo senso de justiça social baseado na condição essencial e imprescindível de sustentabilidade, como vários outros, inclusive muitos brasileiros. Por exemplo, tenho uma conversa com a Monja Coen e o Aílton Krenak sobre a natureza da realidade, e outra com o Sidarta Ribeiro e a Adana Kambeba sobre saúde mental e medicinas alternativas. Eu farei uma viagem pelo universo no segundo dia, chamada Do Big Bang ao Biocentrismo, enfatizando uma nova moral para a humanidade centrada na vida. Desenhamos um espaço dedicado a empresários de modo que seja possível fazer bastante networking e trocar ideias. Acho que criamos algo que falará tanto à mente quanto ao coração de todos que estiverem lá, empresários ou não.
Tenho entendido, mais e mais, que transformações reais só acontecem quando algo se transforma internamente nas pessoas, e suas decisões na vida, em geral, começam a ser movidas por novas crenças. Temos visto que apenas assim novas decisões começam a ser tomadas nas empresas. É um fator humano essencial para a transformação. O Island of Knowledge tem, de certa forma, o desejo de fazer este papel com os retiros que vai promover?
Lourenço Bustani – Nós compactuamos com a crença de que a mudança mais efetiva e a que mais perdura é aquela que vem de dentro. E é por isso que criamos um espaço seguro e inspirador para que líderes possam olhar para si mesmos e se perguntarem: “que tipo de líder o mundo à minha volta precisa que eu me torne?” Viver este processo em meio à natureza, no berço da Renascença, junto de outras lideranças – num contexto de retiro –, nos parece uma fórmula certeira para que saiam do outro lado com uma visão de mundo atualizada e um senso de propósito afiadíssimo.
Você pode contar um pouco sobre o tipo de experiência que se pode esperar em um retiro na Toscana, no seu espaço? Pode comentar alguma atividade? E por que acredita que essas experiências poderão ser transformadoras?
Lourenço Bustani – O itinerário será composto por uma Toscana única, fora do radar, mapeada ao longo da vida do Marcelo e sua esposa, Kari. Serão atividades itinerantes pela região, misturadas com conteúdo e discussões na sede do Island of Knowledge.
Quanto à transformação, o Island of Knowledge se pauta muito no conceito de “story of place”, que valoriza a história da terra em que pisamos. Situada no coração da Toscana, berço da Renascença, nas colinas que rodeiam a cidade de Monteroni d’Arbia, a 20 minutos de Siena e 1 hora de Florença, a sede do Island of Knowledge é uma localidade histórica, com origens no século XIII. Na época, peregrinos indo ao Vaticano ao longo da famosa Via Francigena paravam numa antiga casa de fazenda no vilarejo de Radi para rezar diante de uma imagem da Madona com o infante Jesus ao colo. Em torno de 1590, um marquês da família Spanocchi erigiu uma igreja – o Oratorio di Barottoli – para abrigar a imagem da Madona e uma mansão adjacente para a família e alguns peregrinos. No século seguinte, o Oratório tornou-se extremamente popular, atraindo multidões de devotos inspirados pelos 39 milagres que lá foram sancionados pelo Bispo de Siena. Durante o século XX, foi a residência de Fabrizio Clerici, famoso pintor, arquiteto e cenografista italiano cujos vários amigos, incluindo Salvador Dalí, eram presenças frequentes. Hoje a propriedade pertence à família Gleiser e é a sede do Island of Knowledge. Com profundo respeito pela história ilustre de oito séculos, a igreja foi restaurada para servir como retiro e centro de conferências com todas as amenidades modernas, preservando a beleza e obras de arte originais. Tudo isso para dizer que, ao nosso ver, o contexto importa, e os processos de transformação que queremos facilitar serão potencializados por estarem transcorrendo exatamente neste lugar.
Pode adiantar um pouco o perfil dos participantes da primeira empreitada em outubro?
Lourenço Bustani – Uma mistura de C-level de empresas médias e grandes, brasileiras e multinacionais, conselheiros(as) de empresas de capital privado e aberto e acionistas de grandes empresas familiares. As idades variam entre 40 e 75 anos.
Qual o recado fundamental do seu novo livro “O Despertar do Universo Consciente”, e como está sendo a jornada dela? Como compara este livro às suas obras anteriores?
Marcelo Gleiser – Sim, continuo a discutir uma visão científica e sua relação com a cultura e a sociedade, mas meu foco neste livro é o futuro do nosso projeto de civilização. Tanto que o subtítulo é “Um manifesto para o futuro da humanidade.” Argumento que, para sobrevivermos, temos que nos reinventar, e esse processo começa com a compreensão de nossa profunda relação com o planeta e a vida nele. E, como todo bom manifesto, ele deve primeiro tecer os argumentos que mostram como a situação atual é insustentável e deve ser mudada para depois sugerir como fazê-lo. Recontando a história de “como chegamos aqui nessa situação crítica?”, exploro as revoluções agrária, industrial e digital, e suas raízes no pensamento científico, que culminou, milênios depois, no Iluminismo. Falo da dessacralização do planeta e, ao fazer profunda análise da questão da vida fora da Terra baseada na astrobiologia moderna, argumento que nosso planeta, longe de ser apenas “um outro mundo entre tantos”, é um mundo extremamente raro e especial. Proponho o pensamento biocêntrico como guia para essa transformação moral que precisamos para sairmos da atual trajetória suicida em que nos encontramos. Ao contrário dos tantos cenários distópicos que vemos por aí, minha proposta é positiva e empodera todas as pessoas a serem agentes da transformação que precisamos implementar.
Qual o principal erro que as empresas vêm cometendo nas estratégias de ESG, em sua visão, especialmente no Brasil?
Lourenço Bustani – Isso daria pano para uma dissertação, mas, em resumo, são três grandes erros – um conceitual, um intelectual e outro ético.
O erro conceitual é o de definir metas de impacto sem levar em conta o contexto em que o impacto ocorre. A maioria das avaliações que pautam a agenda da sustentabilidade corporativa, infelizmente, não considera o contexto ao avaliar a performance de uma empresa em seus indicadores. Isso significa que objetivos e metas geralmente existem no vácuo, sem qualquer relação com limites planetários e pisos sociais. Este é atualmente o maior ponto cego no universo da sustentabilidade. Já a “materialidade baseada no contexto”, ou materialidade tripla, surge como a abordagem compatível com a verdadeira sustentabilidade, ao buscar garantir que os impactos negativos e os compromissos e as soluções estabelecidos pelas empresas sejam vistos em relação aos limites planetários e pisos sociais. Só dessa maneira é possível determinar se o que uma empresa está fazendo ou deixando de fazer é o suficiente para que ela esteja contribuindo de fato para a melhoria dos quadros sociais e ambientais. Na ausência desses parâmetros, qualquer avaliação se torna subjetiva e arbitrária.
O erro intelectual está em achar que estratégias de ESG por si só vão resolver as crises que estão postas, sem que haja uma mudança sistêmica radical e uma revisão da lógica perversa do crescimento sem fim (e o consequente aumento de emissões). ESG, neste sentido, é enxugar gelo e se iludir de que algo está sendo feito enquanto o navio afunda ainda mais.
Por fim, o erro ético tem a ver com a forma como metas de ESG estão sendo estabelecidas, projetadas trivialmente por décadas, sem nenhum plano de acompanhamento no curto-prazo, e sem verificação alguma por terceiros. Enquanto isso, os modelos de negócio seguem no bom e velho “business as usual.” Greenwashing nunca foi tão endêmico, ampliando ainda mais o abismo gritante entre o que uma empresa diz que faz e o que ela de fato é e sempre foi.