As três letras da sigla ESG têm sido debatidas como nunca, e com tantas informações nos enchendo de questionamentos, nada melhor do que conversar com quem entende do riscado. Por isso, a conversa aqui é com Aline Pimenta e Cláudia Mattos, as sócias e cofundadoras da Oitto Impacto, uma assessoria focada em soluções e ações corporativas de sustentabilidade. Elas contam que “a ficha caiu” para a maioria das consultorias especializadas, mas alguns aspectos atrapalham a implementação da agenda ESG, como o pensamento reduzido ao curto prazo. Boa leitura!
Como vocês, na Oitto, tem ajudado marcas a repensar seu papel no mundo diante dos desafios socioambientais que vêm pela frente?
Aline e Cláudia – O conceito de “marca”, em sua essência, é ancorado na ideia de “distinção”: um conjunto de referências abstratas que diferenciam aquela oferta de produto ou serviço em relação à concorrência. Já houve um tempo em que a relevância das marcas estava atrelada a ter um “ponto de vista” diferenciado em relação ao mundo. Hoje, não basta ter um “ponto de vista”, é preciso que a marca esteja efetivamente agindo de acordo com ele.
Em um contexto no qual os desafios socioambientais estão postos de forma muito imperativa na nossa frente, com impactos diretos que já são sentidos em nossos cotidianos, podemos dizer que agir em relação a esses desafios se tornou mandatório para as marcas que queiram se manter relevantes. Esse é o primeiro ponto de contribuição da Oitto no trabalho junto a nossos clientes: a partir de um repertório de estudos, conceitos e referências, trazemos para nossos clientes, de forma profunda, porém, descomplicada, uma contextualização clara sobre o que é hoje esperado de uma empresa – e de sua(s) marca(s) – por parte de diferentes públicos relevantes, como consumidores/clientes, investidores, colaboradores, órgãos reguladores e fornecedores.
Uma vez compreendido que toda marca pode e deve ter um papel social – e que isso é mais do que esperado nos dias de hoje – o segundo ponto importante a ser destacado é que esse papel social precisa estar intimamente ligado ao posicionamento daquela marca e aos impactos positivos – reais e potenciais – que sua operação causa – ou pode causar – na sociedade e no meio ambiente, sem, por outro lado, desconsiderar seus impactos negativos, sejam eles também reais ou potenciais. Ao desenvolver o papel social de uma marca, nosso trabalho na Oitto é, então, pensar esse papel de forma coerente com o negócio e com os impactos que esse negócio gera a partir da ideia de “dupla materialidade’, um conceito importante adotado pela União Europeia desde 2019 que considera os principais impactos da empresa no mundo e do mundo na empresa, sempre como uma “via de mão dupla”. O papel social de uma marca não pode ser desconectado do negócio, como uma via paralela. Mais do que ineficiente, esse tipo de abordagem implica em riscos concretos para as empresas.
“A ficha já caiu”, como se diz, para a grande maioria das empresas, ou ainda não?
Aline e Cláudia – Na nossa experiência, a “ficha já caiu” para a grande maioria das empresas, especialmente quando pensamos em grupos específicos: alta liderança e colaboradores mais jovens. Com relação à alta liderança, ESG é hoje, sem dúvida, uma pauta prioritária na agenda de CEOs e Conselhos de Administração. Além disso, existe atualmente o entendimento de que deixar de considerar investimentos em questões ambientais, sociais e de governança que sejam geradores de oportunidades ou minimizadores de riscos para uma empresa pode ser considerada uma falha do dever fiduciário. Por essas razões, a alta liderança está diretamente implicada nessa conversa.
Outro grupo para o qual também podemos dizer claramente que “a ficha já caiu” são os colaboradores mais jovens que, efetivamente, têm uma outra visão de mundo e um outro critério para avaliar as empresas em que desejam trabalhar e as perspectivas de suas carreiras. Para eles, não faz sentido dedicar tempo e energia trabalhando em empresas que não gerem impacto positivo no mundo.
O que atrasa tanto essa agenda? Quais são os maiores desafios que as empresas enfrentam na implementação de práticas ESG focadas na agenda climática?
Aline e Cláudia – Ainda que essa seja uma agenda de extrema relevância, existem desafios em sua implementação não somente relacionados ao aspecto ambiental, mas também social e de governança.
O primeiro grande desafio é o pensamento reduzido ao curto prazo. Se uma empresa concentra o foco de seus resultados somente no curto prazo e não possui uma política de incentivos para que alta liderança e gestores sejam recompensados financeiramente pelo cumprimento de metas ESG, essa certamente será uma barreira imensa para a implementação real dessa agenda. A boa notícia é que muitas empresas já aplicam esse tipo de política de incentivo.
O segundo grande desafio, que de certa forma se liga ao primeiro, é o envolvimento da “média gerência”. Esse grupo, tão relevante para a implementação das estratégias empresariais, precisa estar verdadeiramente engajado no tema e ter as práticas ESG também contempladas em suas metas, com incentivos claros para que sejam cumpridas.
Um terceiro desafio, não menos importante, é a integração das dimensões ambientais e sociais nas estratégias de sustentabilidade corporativas. Como, na realidade, não há impacto ambiental que não passe pelo social – e vice-versa, quanto mais integradas estiverem essas dimensões, maior o retorno e maior o engajamento interno e externo.
Como as marcas podem assumir um papel mais ativo e responsável na resposta a catástrofes climáticas, como a que estamos vivendo no Rio Grande do Sul?
Aline e Cláudia – Vemos duas grandes dimensões de atuação. A primeira é constituída de iniciativas de enfrentamento às causas das mudanças climáticas. Que medidas empresas e marcas podem e devem incorporar às suas operações? Tragédias como a que estamos testemunhando no Rio Grande do Sul materializam a urgência de planos de sustentabilidade corporativos mais robustos, integrando aos planos de negócio estratégias efetivas no enfrentamento aos grandes desafios socioambientais que estão postos no mundo. Não é mais sobre a sustentabilidade de gerações futuras é sobre a sobrevivência e as oportunidades de desenvolvimento da sociedade hoje. A segunda dimensão é a tempestividade em cenários de crise. Marcas e empresas precisam estar prontas para responder com rapidez a tragédias como essa. Em contexto de escassez de recursos, itens de subsistência e serviços essenciais serão demandados. Cabe a empresas e marcas, dentro da natureza de suas operações, atuarem onde conseguem gerar mais impacto e adaptar suas operações para suprir essas necessidades com muita agilidade (exemplo da AMBEV que interrompeu a produção de outros produtos para produzir água potável). Pactos intra e inter categorias e setores também são desejados. Diferentes empresas e marcas, aliadas entre si e aos primeiro e terceiro setores, potencializam o impacto de suas ações na medida em que cada ator envolvido terá maior capacidade de atuação em alguma área.
E como as empresas podem transformar esses desafios em oportunidades para liderar e inovar no campo da sustentabilidade?
Aline e Cláudia – Inovação e sustentabilidade são hoje indissociáveis. Buscar novos processos, tecnologias e produtos que viabilizem a materialização das estratégias de sustentabilidade corporativas é mais do que oportunidade de crescimento nos negócios, é questão de sobrevivência.
Empresas e marcas têm um papel fundamental no campo da sustentabilidade e ainda pouco aproveitado. Na visão de muitos gestores, sustentabilidade ainda está restrita às questões ambientais e limitada às ações mais pontuais e internas, como compostagem ou campanhas de uso consciente de água em áreas operacionais, por exemplo, a programas de saúde e bem-estar ou a patrocínios e investimentos sociais privados. Claro que esses temas são importantes, mas não dão conta dos desafios socioambientais que estamos enfrentando. Empresas que já entenderam a importância de se montar uma matriz de materialidade e construíram uma estratégia de priorização de investimentos e de foco para inovação nos temas onde suas naturezas operacionais geram mais impacto, largaram na frente e estão revertendo para o negócio ganhos reais por conta dessas iniciativas. Seja por aumento na reputação das marcas (e consequentemente mais diferencial competitivo e valor financeiro) ou por ganhos financeiros diretos, obtendo créditos a juros mais baratos ou pagando menos por conta de iniciativas de eficiência hídrica ou de uso de energia de fontes renováveis, por exemplo. A sustentabilidade é definitivamente um bom negócio.
Sublinho aqui que, além de não aproveitar oportunidades de garantir a longevidade do negócio ou mesmo de potencializá-lo, empresas e marcas que ainda limitam suas iniciativas de sustentabilidade a ações pontuais ou a esforços de comunicação sobre temas nos quais não construíram nenhum lastro, estão sob risco. Risco, a curto prazo, de serem classificadas como aproveitadoras ou inertes diante de tantos desafios socioambientais que ameaçam a saúde da sociedade e, consequentemente, dos negócios. Risco, a médio e longo prazo de realmente inviabilizar suas operações, como está acontecendo com empresas do Rio Grande do Sul ou as que têm parte de seus “stakeholders” sediada lá.
Empresas não são bolhas. Elas e sociedade se afetam mutuamente e se algo ameaça a sociedade é questão de tempo para que as empresas nela inseridas sintam o impacto dessa ameaça.
Como as empresas podem garantir que suas iniciativas climáticas sejam sustentáveis a longo prazo?
Aline e Cláudia – Como mencionado na resposta acima, existe um risco real para empresas e marcas que não investem em iniciativas de enfrentamento às questões climáticas. E quem faz essa “conta”, já entendeu isso. Sob o aspecto financeiro, é muito mais vantajoso investir nesse tema do que se eximir dele. Pegando como exemplo o caso do Rio Grande do Sul, vemos empresas e suas cadeias de valor serem impactadas financeiramente diante dos efeitos da crise climática. Para além, claro, de todos os impactos humanitários envolvidos em situações como essa, é um mau negócio não investir em ações efetivas de enfrentamento às questões climáticas. Essa postura significa colocar em alto risco a longevidade da própria empresa.
Existem diversas iniciativas de enfrentamento das questões climáticas. Todas conectadas à redução das emissões de GEE. As reduções diretas são as que promovem um impacto mais rápido. Deixar de emitir GEE é mais efetivo do que compensar as emissões via compra de créditos de carbono, por exemplo. Claro que não existe hoje a expectativa que todas as empresas consigam zerar as emissões diretas. Não existe ainda tecnologia suficiente que permita que categorias cujas operações são ancoradas nos combustíveis fósseis, como siderurgia, por exemplo, zerem suas emissões diretas. Até o desenvolvimento de novas tecnologias compreende emitir GEE. Contudo é dever das empresas investir nesse tema, buscando reduzir drasticamente suas emissões em composições de iniciativas (redução direta, reflorestamento, sequestro de carbono, etc…) que caminhem ao longo do tempo para uma maior participação de ações que visem a redução direta do que para ações de compensação.
Além disso, é importante que mais empresas se comprometam em medir e estipular metas de redução no escopo 3, ou seja, emissões originadas de operações comerciais por fontes que não são de propriedade ou controladas diretamente pela organização, como cadeia de suprimentos, transporte, uso ou descarte de produtos. Muito tem se discutido sobre a complexidade de medição do escopo 3 e o próprio Programa Brasileiro GHG Protocol tem provocado o debate e proposto algumas diretrizes para modelos de medição mais simples com o objetivo que mais empresas se comprometam com metas de redução no escopo 3. É mirando nesse escopo que as empresas irão entregar sua maior contribuição para a redução de GEE e para o, consequente, enfrentamento da crise climática.
Quais métricas e indicadores são essenciais para medir o sucesso das práticas ESG relacionadas ao clima?
Aline e Cláudia – Existem quatro indicadores chave globais de mudança climática: concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera, aumento do nível do mar, calor e acidificação dos oceanos. Eles pontuam o quanto o planeta está avançando para um ponto de não retorno (algumas geleiras já chegaram lá). Esses indicadores, porém, nos apontam os efeitos globais oriundos da postura de todos os países do mundo em relação às questões climáticas. Cabe às empresas fazerem a sua parte, medindo anualmente suas emissões e estipulando metas alinhadas às diretrizes globais de redução de emissões de GEE.
Dentro das organizações, as emissões de GEE podem e devem ser medidas em três escopos. O escopo 1 compreende as emissões liberadas para a atmosfera como resultado direto das operações da própria empresa. Caldeiras, frota, são alguns exemplos de fontes de emissões no escopo 1. Já o escopo 2 se refere às emissões indiretas provenientes da energia elétrica adquirida para uso da própria companhia. Ou seja, todas as emissões de gases de efeito estufa na atmosfera a partir do consumo de eletricidade produzida a partir de fontes fósseis. E o escopo 3, como falamos anteriormente, é referente a todas as emissões indiretas, que ocorrem na cadeia de valor da empresa. Em outras palavras, são emissões ligadas às operações da companhia, como matéria-prima adquirida, viagens de negócios e deslocamento dos colaboradores, descartes de resíduos, transporte e distribuição, etc. Medir anualmente suas emissões nos três escopos (1,2 e 3), estipulando metas alinhadas de redução em cada um deles, investindo em inovação e implementando processos e iniciativas que enderecem essas metas é o que permitirá às empresas monitorarem os impactos reais de suas iniciativas de enfrentamento à crise climática. O acompanhamento anual das evoluções rumo às metas estabelecidas, com rastreabilidade correta das principais fontes de emissão possibilitará correções de rotas nos processos de inovação para transição energética, assim como propiciará que os investimentos sejam corretamente direcionados para as iniciativas de maior impacto nas reduções de emissões de GEE.